domingo, 10 de maio de 2009

O homem por trás da foto

Não gosto de guardar livros antigos de escola. Pode ser uma superstição minha, mas não gosto. Quando eu era garoto esperava os finais de ano pra vendê-los e nunca gastava com coisas muito construtivas. Meu dentista devia ficar muito grato pela minha irresponsabilidade (que saudade do bolin frutas, principalmente o de melancia).

Esses livros, quando folheados, sempre trazem recordações do passado. Amores que se foram, amigos que perdemos, sonhos que se desfizeram. É engraçado, mas por trás das fórmulas de matemática e física conseguimos ler toda a nossa biografia durante aquele tempo. Por isso, talvez, os tenha vendido e acho que agi com sabedoria antecipada. Certos sonhos misturados com a realidade do hoje seriam insuportáveis.

Semana passada estava procurando um livro na estante, ”Da morte - Metafísica do amor – Do sofrimento do mundo” do Schopenhauer. Não é um livro comum. Na cabeça do filósofo esse livro nunca existiu, essa publicação é uma coletânea de escritos feitos pelo autor com realidade brutal, o sofrimento escondido em cada canto da vida e em todas as suas faces. O livro choca.
Passando a mão sobre os livros que ainda guardo, um deles me chamou a atenção. Era um livro de capa roxa, redação, oitava série. Porque não o troquei por chicletes e balinhas no final de ano? Ao folhear lembrei. Alguns textos baratos feitos por mim e uma tirinha do Calvin e Haroldo, consegui rir de novo da mesma tirinha seis anos depois.
Lá pelo final do livro, junto com uma sugestão de redação existia uma foto que me marcou muito, era uma menininha que agonizava enquanto um abutre esperava para devorá-la.


Durante o Apartheid, o Sudão sofreu uma crise alimentar que afetou o país mesmo depois do fim do regime. Como tantos, a menininha caminhava atrás de comida, andava até o campo alimentar da ONU. Sem forças,ela caiu no chão com as mãos no rosto, parecia chorar. Enquanto ela chorava e esperava pela morte, o abutre pousou a espera do fim da cena. Foi o suficiente. O responsável pela foto levou o grande prêmio do jornalismo, o Pulitzer*.

Kevin Carter era o homem da foto. Jornalista sul africano, premiado pelas suas fotografias, em 26 de março de 1993 teve a foto vendida ao New York Times. Na mesma noite, o jornal recebeu centenas de ligações, todos queriam saber o destino da menininha. Ninguém sabia, mas pela situação não era difícil deduzir.
Em 23 de maio de 1994, Kevin atingiu o auge da sua carreira, foi agraciado com o prêmio Pulitzer por Recurso Fotográfico na Universidade de Colúmbia em Nova York.
Dois meses depois, dirigiria a Nissan vermelha até o pequeno rio Braamfonteinspruit em Johannesburgo, lugar em que costumava brincar quando criança. Ligou o escapamento com o interior do carro através de uma mangueira, escreveu o bilhete e ligou os fones de ouvido. Kevin Carter acabara de se matar.


Ele teve tudo, uma carreira, sucesso profissional, enfim, oportunidades. Ela morreu sem saber o que oportunidade significava. Com certeza tinha sonhos e talvez o sonho dela fosse bem menor do que Carter já era na realidade. O fotógrafo, a garota. Eles só cometeram os grandes erros da vida, os erros que o dramaturgo irlandês Oscar Wilde definiu bem. “Só há duas tragédias na vida: uma é não conseguir o que se quer, a outra é consegui-lo”. Ele conseguiu, ela não. A tragédia se abateu sobre os dois da mesma forma. Não, para Carter foi mais trágico, depois que se consegue tudo o que se quer só resta desespero, para ela ainda restavam sonhos.


Achei o livro do Schopenhauer no cantinho da estante. Adoro suas máximas realistas."Sentimos a dor mas não a sua ausência".Concordo. Mas, por favor, me desculpe Schopenhauer.Quando vi novamente a foto, eu confesso, eu também chorei.


2 comentários:

  1. eh...realmente interessante...mas eu nunca me desfazeria de uma nissan vermelha....nem a pau...pode ter certeza q o caixao dele n foi simplezinho naum...arran sei...
    entendo o sofrimento mas a familia dele concerteza adorou dividir seus ganhos...

    Douglas.

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  2. uau..
    enquanto lia me veio na cabeça tantas recordações,
    fiquei imaginando vc na oitava serie e as lembranças boas e ruins que poderia ter;
    imaginei o que eu tenho de bom pra lembrar dessa época,
    sinceramente era uma época boa e ruim ao mesmo tempo, sao tantas lembranças!
    as vezes ainda acho um pedacinho de papel por ai de tempos antigos,
    da vontade de chorar, da vontade de voltar, da vontade de n ter vivido aquilo ou vivido mais intensamente..
    nao sei, nao sei
    seu texto me trouxe uma coisa presa na garganta,
    acho q é vontade de chorar pelas coisas que nao voltam, mesmo que com elas viessem as coisas ruins.

    Amei. Sem mais.

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